19 Outubro 2018
Um profissional vai para o trabalho. Mas não sem antes conseguir a companhia de uma outra pessoa para fazer sua segurança pessoal. Por vezes, esse profissional tem que conversar com algumas pessoas, mas estas respondem se dirigindo somente ao “segurança”, ao motorista ou até ao estagiário. Mesmo possuindo todo o know-how, força física, intelectual e domínio dos métodos, esse profissional precisar pagar uma outra pessoa para fazer boa parte do serviço. Esse profissional tem filhos. Isso faz com que seja preterido em oportunidades de trabalho. Esse profissional ama o que faz, mas tem que enfrentar o medo para conseguir trabalhar. Ele sofre preconceitos castradores, constrangimentos, ameaças, intimidação. Quem é esse profissional? Que trabalho seria esse?
A reportagem é de Carolina Lisboa, publicada por ((O)) Eco, 17-10-2018.
Estamos falando de biólogas, geógrafas, ecólogas, engenheiras, veterinárias e tantas outras profissionais que trabalham com meio ambiente e realizam pesquisa em campo no Brasil. São mulheres que, em muitas situações, saem para trabalhar antes do sol raiar ou quando a noite cai. Precisam ser corajosas e guerreiras para exercer sua profissão. Mas não deveria ser assim. Infelizmente vivemos numa sociedade insegura, desigual, machista e paternalista.
Inspiradas por movimentos como o Parent in Science e o internacional Women in Science e dispostas a “pôr o dedo na ferida” nesse assunto que provavelmente nunca foi discutido abertamente, um grupo de profissionais resolveu discutir os percalços enfrentados no decorrer de suas atividades em campo, além de expor situações e experiências pessoais. A ideia surgiu de um diálogo entre as pesquisadoras Cláudia Martins e Liana Sena. Concordando que o tema merecia ter visibilidade, elas contactaram outras colegas pesquisadoras e formaram um grupo onde cada uma pôde contar suas experiências.
Em síntese, elas elencaram quatro grandes questões que são entraves para as mulheres que atuam em campo:
Elencamos a seguir alguns depoimentos das pesquisadoras sobre situações pontuais ou cotidianas em que foram vítimas de machismo, paternalismo, discriminação, intimidação ou medo.
“Trabalho no interior do Piauí, Estado com números elevados de violência contra a mulher, incluindo a sexual. Quando passo em uma cidade em que sei que ocorreu um estupro recente, tenho cuidado dobrado. Recentemente, após ter conhecimento de vários casos de estupro na região do sul do Piauí, um funcionário de um órgão federal fez um alerta direto: não ande mais sozinha em campo. Desde então, eu deixo de ir a campo quando não tenho a companhia de um homem. Acho surreal ter que ir trabalhar com medo de estupro. Mas, apesar do sentimento revolta e injustiça, temo pela minha segurança e da minha equipe, atualmente composta somente por mulheres, e tenho que ceder às circunstâncias. A necessidade extra de destinar recursos financeiros para pagar homens para exercer o papel de acompanhantes em campo faz com que se deixe de aplicar um recurso precioso, captado com muito custo, em coisas essenciais como equipamentos, combustível ou mais dias de coleta. Além disso, é preciso fazer manobras para encaixar essas pessoas, que muitas vezes têm outras ocupações, afetando também o cronograma.” – Liana Sena, bióloga, doutoranda em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre na UFMG.
“Atualmente estou fazendo um trabalho de campo que necessita de monitoramento à noite em áreas urbana e rural, e recebi recomendações da empresa para não ficar até muito tarde, por ser perigoso para mulheres. Isso, com certeza, afeta o trabalho”. Carolina Franco Esteves – bióloga, pesquisadora do Programa Amigos da Onça.
“Em 2006 realizei um grande sonho: trabalhar em um importante centro de pesquisa e conservação do governo. Minha função era ir atrás das onças-pardas e onças-pintadas no interior da Bahia, na região hoje conhecida como Boqueirão da Onça, que na época lado a outro e centenas de quilômetros de trilhas e não trilhas, para caminhar com o cuidado de não pisar em uma roça de maconha e garantir a volta para casa. Fiquei conhecida na região como a mulher das onças, a mulher do Ibama ou a Cláudia das onças. Mas isso não reduziu o perigo, pois para eles era eu quem fiscalizava as caçadas. Assim, logo veio o recado: diga para a Cláudia não andar sozinha. Certa de que podia contar com a segurança da instituição que eu trabalhava, ouvi: hum, mas isso é comum para quem trabalha em campo, principalmente com fauna. Traduzindo: se vira nos 30, Cláudia! Acho que minha teimosia, minha responsabilidade em terminar o trabalho e a paixão pela região me fizeram continuar. Mas daí para frente sempre acompanhada por um ou pelos dois dos meus guias e auxiliares de campo, mesmo sabendo que logo atrás dos tratores que abriam quilômetros de estradas ilegalmente, e que eu ia passar em seguida, estava uma caminhonete cheia de capangas armados.” – Cláudia B. Campos, bióloga, pesquisadora do Instituto para Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros.
“Em meu primeiro trabalho envolvendo entrevistas em campo, precisei ir junto com um colega homem numa comunidade de pescadores, porque era mais seguro e ele tinha mais credibilidade com os pescadores. Em meu segundo trabalho, precisei ir acompanhada de um homem por questões de segurança. É simplesmente impossível fazer campo sozinha no Brasil. Hoje estou fazendo meu doutorado e, pela primeira vez, a pesquisa não é no Brasil, mas no Canadá. Vou entrevistar pessoas de novo, batendo nas portas e pedindo licença. Aqui não preciso ir acompanhada de ninguém! O sentimento é outro. Me sinto segura, empoderada e responsável pela minha pesquisa. Mas o mais interessante é que meu professor pagou para nós mulheres fazermos um curso de autodefesa, just in case.”– Monica Tais Engel, bióloga, doutoranda na Memorial University of Newfoundland.
“Recordei do dia em que um caminhão parou bruscamente na estrada, depois do motorista me avistar recolhendo umas armadilhas. Desceram correndo três caras na minha direção, um deles gritando: hoje tu não me escapa. Fiquei imóvel, segurando quatro gaiolas em cada mão, enquanto surgia atrás de mim o meu colega de campo, que perguntou: algum problema aqui? Aí os caras apontaram o dedo pra mim e disseram: dessa vez tu escapou, só dessa vez.” – Josi Cerveira, bióloga, doutora em Ecologia Aplicada pela ESALQ/USP.
“Tenho 42 anos, mãe, solteira, e trabalho em campo com aves desde 1995. Já enfrentei muitos desafios, preconceitos e dificuldades por ser mulher em campo. Já fiz vários campos sozinha, por não conseguir aceitar o fato de que não posso fazer meu trabalho sozinha. E a última vez, há pouco tempo, confesso que fiquei com bastante medo, pensava na minha filha. Muitas pessoas me dizem que não posso lutar sozinha contra uma sociedade. Concordo.” – Flávia de Campos Martins, bióloga, doutora em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).
“Durante minha primeira campanha de captura de onças, fui acompanhada por mais cinco profissionais homens e, infelizmente, fui obrigada a ouvir piadas machistas de todo o tipo, e a frase: ah, agora está bom!, vinda de alguém se referindo ao tipo de blusa que eu estava usando, mais justa do que o de costume. Recentemente fiz um trabalho de campo de 30 dias de acampamento em barracas sem energia elétrica, sem água corrente e num calor de quase 40ºC, e precisava cuidar para que oito homens ficassem bem até o fim. Nesse período houve uma sequência de atitudes machistas inesperadas e crescentes: isolamento, conversas paralelas sem dividir o assunto, não conversa, não divisão de tarefas já pré-estabelecidas. Quando percebi isso, eu já estava quebrada e arrasada. O machismo veio de direções que eu esperava, mas o mais surpreendente foi de onde eu não esperava. Não foi uma situação de perigo físico, mas um ataque psicológico dolorido.” – Cláudia B. Campos, bióloga, pesquisadora do Instituto para Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros.
“Estamos focando em casos acontecidos em relação à nossa profissão, mas sabemos que o machismo ocorre no nosso dia a dia, sempre! Lembro de um caso acontecido comigo em período de trabalho. Estava em uma fazenda de eucalipto para monitorar a fauna com uma equipe de cinco pessoas e apenas eu de mulher. Fomos informados que dormiríamos num local totalmente sem estrutura. O banheiro não tinha tranca, ficava pelo lado de fora e era compartilhado com os funcionários da fazenda, que chegavam de ônibus para trabalhar. Meus colegas, solidários, não se sentiram confortáveis com a situação e ficavam vigiando a porta sempre que eu ia tomar banho ou fazer xixi. Na hora da refeição, eu tentava ir bem desleixada para o refeitório, pois assim achava que não chamaria tanta atenção. Eu era a única mulher do local, me sentia numa situação terrível!” – Carolina Franco Esteves, bióloga, pesquisadora do Programa Amigos da Onça.
“Por que você não porta uma arma? Por que não anda com uma faca? Compra um spray de pimenta e fica de boa! A mídia está exagerando! Hoje em dia tudo é mimimi! É o que se escuta daqueles que nunca tiveram que pensar do ponto de vista feminino. Eles se surpreendem e soltam respostas prontas, muitas delas carregadas de preconceito. As pessoas não entendem que as mulheres que vão a campo não querem passar por uma situação de violência, nem como vítima nem para se defender.” – Liana Sena, bióloga, doutoranda em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre na UFMG.
“É tão comum esse machismo que uma autoridade te chama minha filha em evento público e é socialmente aceito, depois de todo o teu percurso acadêmico e profissional. Também é comum no como assim, vais viajar desacompanhada, isso é perigoso, chama um colega pelo menos para te fazer companhia, significando que terás o dobro da despesa – e provavelmente do tédio –, apenas para ter um homem viajando contigo no carro. E por aí vai.” – Cláudia Martins, eng.ª agrônoma, pesquisadora Programa Amigos da Onça.
“Em um trabalho em que eu era coordenadora de monitoramento de mastofauna do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional – PISF, estavam eu, o motorista e os mateiros no carro oficial para pedir autorização para entrar numa propriedade particular. O proprietário só se dirigia ao motorista em sua fala. Não se conformava que eu era a encarregada.” – Carolina Franco Esteves, bióloga, pesquisadora do Programa Amigos da Onça.
“Centenas de vezes senti os olhares masculinos desviando dos meus e se dirigindo para o motorista do carro do Ibama que me acompanhava para responder as perguntas que eu fazia. As mulheres ficavam de longe, olhando curiosas. Até que o motorista um dia disse: pode falar com ela, é ela quem vai atrás das onças. Somando uma incursão para cima da serra, que dava para chegar somente a cavalo, isso quebrou um pouco os olhares machistas, tornando-os curiosos.” – Cláudia B. Campos, bióloga, pesquisadora do Instituto para Conservação dos Carnívoros Neotropicais – Pró-Carnívoros.
“Já ganhei uma bolsa de 800 reais enquanto dois caras, tão formados quanto eu, ganhavam em carteira assinada 3.500 pela mesma tarefa, todos nós contratados ao mesmo tempo.” – Josi Cerveira, bióloga, doutora em Ecologia Aplicada pela ESALQ/USP.
“Fui mãe no meio do doutorado e tive que ouvir do pai da minha filha: o seu doutorado não é igual ao meu! Hoje estou tendo que trabalhar 26 horas por dia para tentar ‘recuperar’ o currículo e a produção, por ter tido que cuidar e sustentar uma filha com a ajuda quase que exclusivamente de outra mulher: minha mãe.” – Flávia de Campos Martins, bióloga, doutora em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).
“Experienciei a orientação de um professor que, diante da aprovação da licença maternidade para bolsistas, chamou as orientandas numa reunião para expor claramente que era contra, por que deveríamos saber o que queríamos da vida: sermos pesquisadoras respeitadas ou encostar a barriga no fogão e gastar o dinheiro público em vão. Me questiono se a falta de enfrentamento à opinião do professor seria fruto do medo ou se minhas colegas estavam apenas habituadas aos comentários discriminatórios.” – Josi Cerveira, bióloga, doutora em Ecologia Aplicada pela ESALQ/USP.
“Já tive alguns conflitos com colegas na academia. Em vários piores momentos, me queriam fazer crer que eu devia ser grata por qualquer pouca coisa – me pergunto se usariam do mesmo discurso se eu fosse homem, sendo que nenhum se candidatou a fazer o que eu faço. Uma vez perguntei a um colega: tu que rotulas minha braveza de grosseria e ingratidão, se eu fosse homem, não me elogiarias pela ambição e pelo merecimento? Estou até hoje à espera da resposta.”– Cláudia Martins, eng.ª agrônoma, pesquisadora Programa Amigos da Onça.
“Não raro o professor expunha o grupo de pesquisa a muitas situações humilhantes e discriminatórias. O grupo se rachava em opiniões, por que alguns não viam problema nisso e era notável que, pouco a pouco, ele arrecadava vários arremedos de discípulos. O macho alfa do grupo estava cercado dos mini-machos de confiança, enquanto as mulheres eram permanentemente classificadas como bonita, feia, louca, que me respeita, sabe até ler um artigo ou só serve pra passar café. Tristemente, soube recentemente sobre uma colega que, após a defesa do doutorado, quis se mudar pra casa dos pais por causa do término da bolsa. Como solução, o orientador ofereceu a ela um emprego de carteira assinada de 20h, para que nas outras 20h ela pudesse se dedicar a escrever os artigos e ficar morando na cidade. Ele ofereceu pra ela o cargo de faxineira do laboratório.” – Josi Cerveira, bióloga, doutora em Ecologia Aplicada pela ESALQ/USP.
Apesar de todas as questões aqui expostas, muitas mulheres têm conquistado espaço e respeito em várias esferas, conseguindo lidar com os desafios de ser mulher e realizar trabalho de campo utilizando estratégias para minimizar situações de risco ou combater injustiças. Algumas delas relataram como se sentem e o que esperam do futuro:
“Precisamos fazer com que esse assunto deixe de ser um tabu na sociedade, as mulheres estão conquistando seu espaço cada vez mais, ainda com muita dificuldade de conciliar o ‘ser mulher’ com o trabalho de pesquisa. A jornada começa a ser dupla quando nos tornamos mães, com mais preconceito, olhares tortos, frustrações e dificuldade de retornar à rotina acadêmica. Precisamos falar sobre isso!” Carolina Franco Esteves – bióloga, pesquisadora do Programa Amigos da Onça.
“Somos metade dos acadêmicos e a maioria em muitos dos cursos de graduação. Aos poucos estamos conquistando espaço e rompendo com as correntes que nos faziam ficar fadadas a um destino preestabelecido culturalmente. Contudo, ainda estamos distantes do ideal. Não temos a pretensão de esgotar o tema ou fazer uma generalização. Nem todas as mulheres passam por ‘perrengues’ dessa natureza em campo. Muito menos temos intenção de criar vítimas ou mártires. Contudo, as questões levantadas são reais. Ameaças como assédio sexual, preconceito de gênero, discriminação e oportunidades desiguais existem e merecem atenção. Reconhecer e tratar o assunto com seriedade é um caminho para diminuir a invisibilidade e estimular a participação de todos. É preciso olhar de forma mais atenta e crítica para situações que são enfrentadas por professoras, pesquisadoras, profissionais, estudantes e/ou cientistas mulheres, que para além da sua liberdade e direito, exercem um trabalho de extrema urgência: a conservação da biodiversidade no Brasil. É uma área que tem muitos desafios intrínsecos e vem enfrentando diversas crises. É necessário que todos possam se dedicar a esta tarefa caso desejem, independente do gênero.” – Liana Sena, bióloga, doutoranda em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre na UFMG.
“Partilho minha experiência de ser uma mulher estrangeira trabalhando e morando no sertão. Como diz uma de minhas autoras favoritas, Chimamanda Adichie, nossas histórias se agarram a nós, somos moldados pelo lugar de onde viemos. De onde eu vim, também existe machismo (onde não existe?). Mas nossa história é antiga, e as mulheres ali têm orgulho de serem mulheres e não permitem que outros escrevam sua história. Isso significa decidir e sustentar suas decisões, verbalizá-las e ser intransigente, se é isso que acredita. Significa arriscar e não temer as consequências de ser livre em decidir e fazer o que deseja fazer. Se o outro se incomoda e nos rotula de inconvenientes, faz parte do voo livre da mulher. Conheço muitas colegas que encontram em seus papers, palestras, aulas, seminários, cursos, oficinas, escapes dessa prisão em que tentam mantê-las, que é a convicção de que a ciência, principalmente a que demanda que façam pesquisa em campo, é um território exclusivamente masculino, perigoso e duro, que uma mulher, com ou sem marido, mãe ou não, não consegue aguentar por conta de sua fragilidade. A ambos, homens machistas e mulheres resignadas, ofereço um excerto do poema de Sunni Patterson, de ‘Wild women’: Tomem cuidado porque mulheres selvagens não devem ser domadas, apenas admiradas.”– Cláudia Martins, eng.ª agrônoma, pesquisadora Programa Amigos da Onça.
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Os desafios de ser mulher e trabalhar com conservação em campo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU